Matéria escrita em outubro de 2005

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A liberdade em contraluz

texto: Américo Lucena Lage / Fotos: Lucas Pupo

Bike na contraluz, Lucas Pupo, Amsterdã

Em Amsterdã pode se fumar um baseado, se quiser, na cara da polícia. Ninguém vai prende-lo ou entedia-lo com um sermão desgastado sobre os riscos do uso de drogas. No bairro da Luz Vermelha as putas oferecem seus serviços abertamente, como se fossem comerciantes comuns e, como comerciantes comuns, pagam impostos e até mesmo têm sindicato próprio. Homossexuais se beijam nas ruas, sem vergonha e sem medo de apanhar de um bando de machistas inseguros da própria sexualidade. Em resumo, na capital da Holanda todas as vantagens da liberdade se manifestam.
Na contra-mão, a política liberal de drogas transformou Amsterdã em uma capital internacional do narcotráfico. Um lugar onde drogados vagam pelas ruas e roubam sua bicicleta. Meninas brasileiras, polonesas e russas são atraídas para a cidade com falsas promessas e acabam na prostituição. É uma conclusão dolorosa: todas as desvantagens da liberdade também aparecem em Amsterdã.

O que sobra é uma realidade destorcida, surrealista. No Hemisfério Norte, o baixo ângulo do sol de outubro produz uma luz deslumbrante, como se fosse eternamente manhã ou tarde. Amsterdã parece estar ao mesmo tempo no futuro e no passado. Os moradores se movimentam de bicicleta entre a arquitetura medieval, passando pelas mil pontes sobre os canais da cidade. No pano de fundo, as casas tortas por causa de alicerces de madeira que afundam no solo pantanoso. Mas, por sua diversidade cosmopolita e sua moral livre, o amsterdamês respira uma modernidade que não se encontra em nenhum lugar do mundo.
O berço da liberdade como conceito moderno, a liberdade da Revolução Francesa, está em Amsterdã. Foi pra lá que filósofos, judeus, protestantes e todos os outros perseguidos do século 17 fugiram para escapar da censura e da opressão da autoridade divina dos Reis e da fogueira da Santa Inquisição. Foi lá que John Locke escreveu sua ‘Epistula de Tolerantia’, foi em Amsterdã que Baruch Spinoza e René Descartes encontraram o espaço para desenvolver suas idéias.
É uma liberdade nascida de um casamento incomum, uma união de conveniência entre a necessidade e a avareza. A necessidade de se proteger do mar e o irresistível desejo de se enriquecer com tudo, em qualquer parte do mundo, indiferente de cor ou religião. Foi essa ultima qualidade que, por volta do ano 1635, despertou o seguinte comentário de Descartes: ‘todos estão tão obcecados com o próprio proveito, que poderia viver minha vida inteira aqui sem ninguém me perceber’.

coffeeshop, Amsterdã, Lucas pupo

Amsterdã surgiu por volta do século 12 numa região pantanosa que era periodicamente invadida pelo mar. Foi essa constante ameaça de inundações que salvou a cidade de dois perigos maiores: o rei e o bispo.
Para se proteger do mar, os primeiros habitantes de Amsterdã dependiam de um vasto sistema de diques e represas, uma impressionante obra de engenharia para a época que necessitava um alto grau de organização. A rede de diques era subdividida em vários setores e em cada setor uma pessoa, chamada de ‘dijkgraaf’, era responsável pela construção e manutenção dos diques. Era um encargo de importância vital e as pessoas que á preenchiam gozavam de enorme prestigio. Em contraste com outras regiões européias, nem a nobreza nem a Igreja conseguiu quebrar este poder local. Os habitantes de Amsterdã sempre entenderam que os conceitos de Deus e Pátria não valem nada sob seis metros de água salgada, se é que valem alguma coisa no seco.
Essa autonomia administrativa combinou com a ganância dos mercadores de Amsterdã e possibilitou uma fabulosa metamorfose que, em menos de 3 séculos, transformou uma pequena aldeia de pescadores na mais poderosa cidade do século 17. Não é uma mera coincidência que Nova York se chamava originalmente de Nova Amsterdã. Amsterdã foi a primeira capital capitalista da historia e a poderosa Companhia das Índias a primeira empresa acionista.
A cidade vendia de tudo, da rara seda chinesa a frotas de guerra completas, e para todo o mundo, seja para seu melhor amigo ou seu pior inimigo. O rei da Espanha, que na época dirigia uma guerra sangrenta contra a Republica das Províncias Unidas, da qual Amsterdã pertencia, pagava seus soldados com empréstimos obtidos na cidade inimiga e construía seus navios de guerra com madeira comprada nas bolsas de Amsterdã.
Os mercadores fabulosamente ricos de Amsterdã, os verdadeiros donos do século 17, não abraçaram a liberdade de religião por convicção, não tinham um amor peculiar pelo povo judeu ou mulçumano. Mesmo assim, Amsterdã era a única cidade onde essas minorias eram livres de perseguição. A tolerância da cidade tinha um motivo e um motivo só: a liberdade era boa para os negócios. Não queriam saber quem você era ou o que fazia, para os mercadores o que importava era o volume da sua carteira.

Hoje em dia, as cenas de rua ainda são determinadas por essa união pragmática entre a liberdade e o comércio. Em vez de monumentos faraônicos, Amsterdã tem um cinturão de canais que reflete a luz do espetáculo bizarro que acontece por cima da superfície das águas.
Jovens turistas de todos os cantos passam de coffeeshop para coffeeshop até atingirem uma condição de paralisia mental de tanto fumar maconha, os olhares distantes e sem expressão Velhas senhoras reparam as formas fálicas nas vitrinas fluorescentes dos sexshops. E todo o mundo parece se locomover de bicicleta: mães com filhos, homens de terno e gravata, estudantes. Em Amsterdã se tornou impossível destingir entre o comum e o extraordinário.
Desde os atentados de 11 de setembro, um vento frio e xenófobo sopra sobre o continente europeu. O europeu branco teme mais do que nunca as supostas hordas bárbaras decididas a destruir sua civilização. É contra esta luz que a história libertária de Amsterdã ganha um significado especial. Às vezes pode ser vulgar, às vezes pode ser perturbadora, mas, sobretudo, Amsterdã é uma lição de que a liberdade é um gênero de primeira necessidade.

Meninas, Amsterdã, Lucas Pupo

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